terça-feira, 26 de junho de 2012

Piedade

A glória é da natureza. A glória pertence aos deuses. Os mortais recebem-na como dádiva. Da natureza e dos deuses depende quase todo o sucesso de nossa empresa. O suor inutilmente poreja se nada nos foi dado antes. O empenho humano é uma ninharia, um arranjo de veleidades que se levantam e tombam conforme uma vontade superior e inapelável. O que é um homem melhor senão um homem dotado por natureza? O que faz além é apenas o coroamento de uma majestade que já existia. As honras são mais dadas do que obtidas. Ai, ai! Os mortais se lamuriam. Os cristãos estão certos em oferecer-nos consolo.

O cuidado, a perfeição, o intento são coisas humanas, misérias que se atropelam. Se se alcança a harmonia, assim apenas é enquanto quiser a natureza. O escárnio dos homens parece pouca coisa perto do escárnio dos deuses. Sem eles, a vida é como uma interminável e vexaminosa procissão de erros. Sem eles, só há crime, pudor e humilhação. Que virtude não é divina? Quem a tem por vontade própria? Sem pedir, sem o querer, a nós são dados todos os bens. O que nos resta é o carro com baixa tributação. O financiamento de uma casa. Um shampoo que nos saiu barato. Refrigérios que vicejam na pobreza e no desespero.

E por isso arrefecerei meu querer? Não, está claro. Tais coisas pouco interferem em nossas vidas. Como o escravo que se conscientiza de seu jugo, assim me conscientizo de minha absoluta dependência do que já me foi dado. Para que a fortuna indômita não nos atordoe, empurramos a charrua olhando para um mínimo de terra que se passa e que ainda se há de passar. Querer ver além é uma insanidade. É contemplar a sombra do infortúnio sobre toda a faina humana. Nosso zelo quase nada significa. Os deuses desmancham indolentes tapeçarias urdidas por noites insones. Como se fosse bagatela, cozinham o arroz arduamente cultivado.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Mulher Rueira

"La buena esposa conviene que mande en los asuntos de puertas adentro de la casa, teniendo cuidado de todo de acuerdo con las normas establecidas. No debe permitir a nadie entrar sin saberlo el marido, guardándose principalmente de las conversaciones de las mujeres callejeras, que tienden a corromper los ánimos." (Aristóteles, Livro III, Econômicos).
Mulher rueira. Para os que acreditavam ser um tipo social exclusivo do proletariado brasileiro, eis aí a prova de que elas existem desde pelo menos a Antiguidade. Não quero com isso, é claro, lançar sobre elas um matiz mais natural e benéfico, mas apenas alertar as boas moças - as que ainda restam - de que moda alguma as poupará do escárnio eterno da posteridade. O que a sociedade e o tempo sutilmente urdem não se revela senão por meio de inteligência e senso. Senso de honra, dignidade e devoção aos deveres naturais.

Como eu gostaria de morrer

Talvez tenha sido muito talco na infância, mas a minha morte eu gostaria que fosse em completo esquecimento. Não que eu fuja das lágrimas. Essas não me satisfariam nem se rolassem feito regatos. Mas meus últimos momentos reservo para um confidente eterno, diante de um monte nevado, sob um dossel de faias ou aos pés de um carvalho. Não sobre o leito de um hospital, cercado de parentes e suas crianças assustadas. Quero antes que o mar vele minha morte, que a praia toda sinta minha existência agonizar e perecer. O céu seria todo o meu consolo. Minha tumba far-se-ia ao vento e ao pó cobrindo-me lentamente.

Meus derradeiros suspiros não serão para os ouvidos mortais, para os que fungam e soluçam entrecortados de baba e ranho. De minha morte só haverá lembrança quando eu houver enfim desaparecido, quando eu for mais rocha do que osso. O longo tempo transcorrido impediria que alguém me lamentasse de maneira escandalosa e inapropriada. Meus futuros pranteadores não habitarão senão os dourados salões e os jardins geométricos, e para mim reservarão não mais que um suspiro ou uma exclamação de comportada curiosidade. Levariam, se muito, um lenço bordado aos olhos, secando-lhes uma ou duas lágrimas.

Alguém, alto e de tamancos, com as meias esticadas e as faces bem constituídas sob o pó, talvez ainda dissesse, muito sério, muito digno: "Lamentável. Mais cinco anos e teria visto o primeiro carro voador espatifar-se contra o edifício do Ministério". E sairiam todos para um pic-nic, para uma porta envidraçada que abririam dois lacaios. Pois não haveria mais motivos para chorar minha banal derrota, mas apenas para enaltecer minha glória e meu estojinho de faiança. Minha morte já teria se esvaído como o sal infinito das vagas, e chegaria bonita como contemplar o laço de um sapato e o abismo sob os pés.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Há dois, somente dois e tão só!

Farei aqui um breve, brevíssimo pacto: eu direi que neste mundo há somente dois tipos de pessoas, e você, em resposta, concordará com um ligeiro aceno. Se é necessário? Como a terra o é para a semente. Pois bem, sobre a face sobranceira do mundo, conforme o combinado, há apenas dois tipos de pessoas: as que, ao correr, fazem "patchakabum ploft karabum" e as que fazem "tuc tuc... tuc tuc". As primeiras correm como se o próprio Xerxes fustigasse-lhes as costas e forçasse-os em obtusa marcha. As segundas correm, ao invés, leves e hábeis, como se um flautista acompanhasse-lhes o belo compasso. As primeiras sofrem e suam, as segundas parecem dançar.

Os primeiros são nossos escravos, seja por natureza ou por infortúnio. Os que são por natureza o são por vontade própria. Os que são por infortúnio o são contra sua vontade própria. De qualquer modo, um e outro correm desesperadamente e sem harmonia; não sabem que direção tomar nem qual ritmo devem seguir, apenas ouvem o zunir do chicote e os brados de seu senhor. Nada farão bem feito, mas atropeladamente e sem conhecimento, amontoando as ordens de má vontade e extasiados pelo medo. Entendem apenas uma linguagem: o que dói e o que não dói. Como o mortal que lhes açoita, obscuramente perecerão. São escravos como o ferro o é do ferreiro.

Os segundos são livres, e só o são por vontade própria, jamais por infortúnio. Tudo o que fizerem será bem feito, pois o fazem de livre vontade. Seu compasso será sempre belo, pois que suas pernas seguem o ritmo natural das coisas, e não o de outro qualquer. Não temem uns aos outros, porque que igualmente livres. Sua vontade busca naturalmente a harmonia e a perfeição, pois que não sujeita a outra vontade. Sabem que a única vontade bela é a que segue a vontade do que é primordial, e valorizarão sua liberdade. Não conhecem o desespero, pois sua vontade assenta-se sobre o eterno e não sobre a de um mortal. São livres como as montanhas e os regatos.

Agora, meu amigo, veja bem o que faz. Certamente não queremos ser escravos. Queremos ser belos, agir decentemente e fundar ao nosso redor delicados jardins. Nosso andar deve ser constante, suave, como um ritual. Às nações bárbaras, que ergam seus arranha-céus de ouro e aço, seus hotéis luxuosos e suas piscinas iluminadas. Que ululem e banqueteiem faustosamente. Convém-nos antes a liberdade doce, como o crescer lento das heras, da videira. O estardalhaço reservamos aos que sentem prazer em chicotear e em ser chicoteados. Nós, não. Nossa memória ecoará como sons de flauta e de cítara. Nossa imortalidade será como a neve, como o pinheiro.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Na Antecâmera I

"(...) conjuro-vos, então, a não ceder hoje, 
a lutar bem junto à espuma das vagas na areia
e a garantir dessa forma a própria sobrevivência,
mantendo o domínio sobre este local."
Tucídides, Livro IV, § 10

Nada de especial se lido isoladamente. Porém, se comparado com o restante do texto - impessoal, longamente discorrido - é como um copo d'água em um deserto. As imagens sobrepostas, a nitidez com que se vislumbram os pés dos soldados fincados na areia fazem de um detalhe breve o resumo de toda a ideia: que lutem firmes, sem jamais perder o ânimo; que mantenham suas posições, custe o que custar; que permaneçam  em tal lugar e batalhem de tal e tal maneira, pois só assim se obterá a vitória. Mas cem palavras como essas não alcançariam a força e a precisão das que, sendo escolhidas entre muitas, são poucas e valiosas. Não somente, no entanto, é a seleção a responsável pelo seu valor, mas a sua raridade, a palavra em si mesma, também a eleva perante as demais. Pois a poesia - ah, sim, é de poesia que penso tratar-se - não é resultado de um mero esforço, de um trabalho de ourives. Talhem o quanto quiserem a pedra vulgar, não alcançarão algo muito maior do que a própria matéria permite e condiciona. Se não me engano, Maiakóvsky insistia muito na importância do trabalho para o poema. Ele e tantos outros. Mas o que não é para ser poesia jamais o será, independentemente do quanto se desgastem sobre. A pretensão nada é quando os meios não a acolhem. É necessário que as palavras certas sejam encontradas, e não criadas pelo artífice fugaz e apaixonado.

E é claro que eu já me distanciei do que pretendia. Queria apenas dizer o quanto me agrada ver uma sentença bem composta e viva em meio ao que é apenas um texto. O efeito, assim entendo, não teria sido o mesmo se eu o houvesse encontrado dentro de um texto com intenções poéticas. E como disso eu pretendi dizer algo a mais? Apenas que o trabalho incessante não é essencial, é até mesmo dispensável. Mais vale a espontaneidade do que já se sabe do que o saber através do aprendizado árduo. Sempre aquele será mais leve, mais fulgurante, melhor. Este apenas o copia como pode. Os poetas sabem disso, mas alguns deles parecem comprazer-se em iludir os que não sabem de que de algum modo eles poderão saber.