A glória é da natureza. A glória pertence aos deuses. Os mortais recebem-na como dádiva. Da natureza e dos deuses depende quase todo o sucesso de nossa empresa. O suor inutilmente poreja se nada nos foi dado antes. O empenho humano é uma ninharia, um arranjo de veleidades que se levantam e tombam conforme uma vontade superior e inapelável. O que é um homem melhor senão um homem dotado por natureza? O que faz além é apenas o coroamento de uma majestade que já existia. As honras são mais dadas do que obtidas. Ai, ai! Os mortais se lamuriam. Os cristãos estão certos em oferecer-nos consolo.
O cuidado, a perfeição, o intento são coisas humanas, misérias que se atropelam. Se se alcança a harmonia, assim apenas é enquanto quiser a natureza. O escárnio dos homens parece pouca coisa perto do escárnio dos deuses. Sem eles, a vida é como uma interminável e vexaminosa procissão de erros. Sem eles, só há crime, pudor e humilhação. Que virtude não é divina? Quem a tem por vontade própria? Sem pedir, sem o querer, a nós são dados todos os bens. O que nos resta é o carro com baixa tributação. O financiamento de uma casa. Um shampoo que nos saiu barato. Refrigérios que vicejam na pobreza e no desespero.
E por isso arrefecerei meu querer? Não, está claro. Tais coisas pouco interferem em nossas vidas. Como o escravo que se conscientiza de seu jugo, assim me conscientizo de minha absoluta dependência do que já me foi dado. Para que a fortuna indômita não nos atordoe, empurramos a charrua olhando para um mínimo de terra que se passa e que ainda se há de passar. Querer ver além é uma insanidade. É contemplar a sombra do infortúnio sobre toda a faina humana. Nosso zelo quase nada significa. Os deuses desmancham indolentes tapeçarias urdidas por noites insones. Como se fosse bagatela, cozinham o arroz arduamente cultivado.